Sinto-me a deslizar... Uma brisa gelada massaja-me o corpo nu e para onde olhe só vejo puzzles gigantes... Estou a voar... Olho para baixo e começo a descortinar formas geométricas estranhíssimas em tons de castanho, verde e cinzento... Estou a voar... A minha pele está enregelada e por isso tento subir, subir, subir... Sinto-me atraído pela luz e pelo calor e pelo silêncio e pelo vazio... Subo mais, mais ainda e está tudo calmo e silencioso e em paz e estou tão quente e tão protegido e tão amado... E de repente a harmonia estagna. Pára. Pára tudo. Oiço um barulho surdo, um trovão, um tremor de terra e sinto-me a esvair, algo me puxa, algo me suga e... Acordo? Acordo assustado, não sei onde estou, levanto-me está escuro estou atordoado baralhado acelerado e ai começa a dor... uma dor insuportável na cabeça, um mistura alternativa do ribombar de ferro com ferro e o som dos derradeiros segundos de um mosquito pré-histórico... Raciocino... Estou em casa e este barulho... Este barulho vem da janela, abro os estores, está lá alguém, não reconheço a figura porque tenho a visão baforada, está-se a rir, grita para mim: Então maluco? - Fodasse... é o filha da puta do Kanina, o Kid Karoxo em pessoa... Entra, digo... ou se calhar só pensei que disse e dirijo-me á entrada, carrego no botão do intercomunicador e entreabro a porta de casa. Vou á casa de banho e lavo primeiro a cara e depois meto a máquina zero dentro do lavatório, sentindo cada goticula a trazer-me de volta. E mijo. Já estou em estado de consciencialização, sei quem sou e porque estou todo fodido... Dóiem-me todas as articulações do corpo e todos os músculos e todos os nervos sem excepção... Saio da casa de banho e cumprimento o Kanina com um aceno de cabeça imperceptível ao comum mortal e ao sentar-me no sofá reparo que como no sonho, estou nu e tenho frio. – Então maluco? Estás todo fodido, não é? É o que dá meninos a armarem-se em homens, não é? – cantarola o cabrão...
Ponho as mãos na cabeça e começo-me a lembrar de acontecimentos recentes, álcool, cigarros, drogas várias, provo o paladar do dejá-vu no céu da boca e sinto-me enojado.
– Queres cuspir, não é? Hum? Isso é que ia bem agora, não é? Ficavas limpinho, não é? Meu cabrão do caralho...- diz ele, admirando o meu mal estar...
Detesto vomitar, é a coisa mais merdosa do mundo, tenho MEDO do grego, parece que vou morrer, é uma sensação de sufoco, nojo e desconhecido sempre que vomito...
– Atão imagina lá agora uma cervejinha bem fresquinha e tu a bebê-la toda de penalty, hã? Uiiii, ka bom que era agora, hã? – diz ele levando á boca um copo imaginário e esfregando a barriga de satisfação.
- Cala-te caralho, não tou bem fodasse! – digo eu reconhecendo a velha salivação a começar a actuar, mas tento-me controlar, sento-me direito no sofá e respiro fundo....
- Uiii, mas bom bom bom mesmo era agora um copinho cheio de baileys com pisang ambom e anis, tudo misturadinho com chantily, isso é que era do baril! – diz ele aproximando-se de mim, unindo o dedo indicador com o do fuckoff, fazendo-os estalar repetidas vezes em sinal de deleite...
– Epá ó Ricardo tá calado só 10 minutos caralho! Vai-me é buscar um balde faixavor – murmuro eu, em tom suplicante e pensando que ao utilizar o seu nome verdadeiro, ele perceberia a gravidade da situação.
- JÁ SEI! Memo memo bom era um copinho de leite acabadinho de sair da teta duma cabra, quentinho e cheio da natas e a cheirar a merda e tu a beberes tudo e as natas a escorrem-te da boca e do nariz...
Agora foi no alvo... a minha kryptonite, a merda do leite... fodasse! Primeiro sinto pequenas e quase imperceptíveis contracções no corpo quando ele diz ‘leite’ e depois heis que vem uma onda de nojo subindo pelo esófago e ai sai-me um vómito tão poderoso e repentino que só o canal bocal era estreito para tamanho tsunami... simultaneamente a isso, o grego perfura-me as narinas e fodasse, este é dos grossos memo...
– Ina kum caralhoooo!!! – grita o kanina. - Parece akela gaja dakele filme man!!! BUÁH, BUÁH, BUÁHHHHHHHH – incentiva o cabrão.
Respiro durante 3 segundos vacilantes para uma segunda de mão... Desta vez sai só pela boca mas tem a mesma duração... Respiro agora por mais tempo e tento segurar O Terceiro Grego... O terceiro é sempre inesperado e certinho ao mesmo tempo. Parece sempre que tá tudo controlado quando... Sai o peido mestre, um bolsar insignificante, só naquela como se o teu corpo quisesse confirmar que não tens mais nada de nocivo para expelir... Check? Check!
- Hã caralho, não tás melhor?- pergunta ele.
- Ya, tou melhor, tou, só preciso de me deitar aqui um bocadinho...
- Nã, Nã, vais masé tomar banho que eu limpo esta merda, vai lá! – diz ele...
No fundo é um gajo bacano, já teve o seu espectáculo e agora tá na hora de arrumar a tenda e bazar. Tomo um banho demorado e escaldante e no fim giro o manipulo até ficar na posição água-super-hiper-master-fria-comó-caralho só nakela do choque térmico. Brincadeiras... Visto-me e quando vamos a sair reparo que a sala está verdadeiramente limpa, sem saber que o que este cabrão fez foi tapar o grego com a ponta do tapete, e até penso em dizer alguma coisa em agradecimento, mas não o faço para não me arrepender.
- Preciso de comer alguma coisa!- informo ao capitão para que ele inclua na sua rota um estabelecimento respeitável para se ingerir algo sólido.
– Ya, já tinha combinado com o Chapas naquele café em frente ao shopping ‘sás? Nas arcadas ao pé da estacão? – questiona ele para ver se é do meu agrado a escolha do chefe.
Sei bem qual é e sei bem qual é a sua real intenção... Tem brazucas boas comó caralho a servir ás mesas... Que se foda, tem também uns jesuítas do demo que eu vou mamar memo á baby e como lubrificante vai ser um ice tea... Toda a gente sabe que a seguir ao grego, uma infusão artificial de folhas é o melhor que pode passar nas goelas dum gajo... Ele diz para irmos de carro mas eu tou com vontade de andar, preciso de respirar um pouco deste oxigénio ferrado e o café não é assim tão longe, digo: Dez minutos tamos lá caralho! Ele resmunga um pouco mas segue-me de perto e acende um cigarro e eu penso em seguir o exemplo, mas decido-me a fazê-lo depois de comer o tal do jesuíta. Não sei que horas são, o sol já vai bem alto e infelizmente não andei nos escutas por isso pergunto: kórasxão? Ele responde: horas de rebentar um cão, passando-me o que eu pensava ser um lucky strike. Fodasse agora não caralho, depois de comer fodasse! - Digo eu meio a rir com o descaramento do bicho... - Me-ni-no, me-ni-no... Aí os andamentos são fodidos, não é? Não te aguentas á bomboca? Ah pois é... só pah duros, não é? – diz ele, sugando com uma moral, que rebenta 1/3 do canhangulo, travando em seguida ruidosamente...Sssssssssssss.... Menino do caralho... - diz ele, segurando o fumo e esganiçando a voz. Expira. - Fodasse vai-te abrir o apetite, meu menino, anda lá, chucha lá aqui no biberão, Lucifer! – Insiste o cabrão... E eu instigado pelo meu Nome da Guerra e por estar farto de o ouvir lá dou uns tirinhos tímidos e volto-lhe a passar a sardinha. Ah bom tava a ver que tínhamos aqui meninos, hã? Mas vê lá, não fumes tanto que o Senhor Jesus castiga, hã? – goza o cabrão com o facto de eu quase não ter feito estragos no bacamarte...
– Cala-te e fuma lá essa merda, tamos a chegar caralho! Olha eu vou entrar, tásóbir? - digo eu esfomeado...
- Ya, ya, já vou meu menino, pede lá uma super pa mim que o pai já vai... Assim que entro, a banda começa a tocar outra sinfonia... BOLOS, BOLOS, BOLINHOS... Começo a cobiçá-los gulosamente, croissants, bolas de berlim, jesuítas, delicias, palmieres, pasteis de nata... Vou manter a minha opção inicial e sentando-me ao fundo do café, faço sinal á brazuca para que me venha atender...
anda cá que eu não t’aleijo...
- Oi posso ájudá?- pergunta ela, a mascar uma pastilha verde-alface e limpando a mesa de maneira a que eu tenha uma boa vista das suas montanhas mamarias, vulgo monténéss... Ela ajeita o uniforme, alisando-o com as mãos e fica algo embaraçada quando me vê a contemplar os seus fartos seios. Disfarço o olhar, fingindo estar a olhar para o seu nome bordado na sua camisa branca de algodão. ‘Rejane’ em maiúsculas, mas não tenho a certeza...
- Sim Rejane olha lá, queria um ice tea de pêssego, um palmiere simples e um jesuíta... e uma superbock faixavor. Ela sorri e vai tratar do meu pedido, enquanto eu vislumbro o seu back-side... Cuequinha metida no rêgo á porca, tribal no fundo das costas, pulseira de ouro no tornozelo esquerdo e sapatinho aberto raso. Mistura de pechenga do cacém com tia de cascais. Nisto, entram os olhos esbugalhados do halfgremlin na cena, tentando ajustar o seu foco espelhado para me localizar e quando o faz, a sua cara empalidece e os seus lábios torcidos cospem: Né que tá a jola caralho, não pediste?
– Calma campeão, já tá a vir, olha. – digo, sinalizando com o olhar, o porta aviões tropical que transporta o nosso pedido.
– Aqui istá... – diz a grossa posicionando automaticamente a bejeca á frente do kanina.
– Brigado xuxu... olha lá... hã... Gostas de samba e isso? Salsa? E esse tipo de cenas? – pergunto eu atirando um barro monstruoso á parede a ver se cola.
– Oi? – ela finge que não entende para disfarçar o seu desconforto mais-que-evidente e para ganhar tempo para melhor avaliar a shituation... Eu repito. Bem devagar. Ela diz: Aí, é claro né! Como não! - Ao que eu respondo timidamente: Então havemos de ir aí a um bar logo á noite e tal, tem lá uma festa tropical tás a ver... tipo samba e isso, talvez musica africana também...
Os segundos que ela demora a articular uma resposta fazem-me sentir como se eu fosse um jogador do Real de Massamá a entrar em pleno Camp Nou num estado de sobrelotacão.
- Pódi até sê...- diz ela a sorrir, mas ao sair do café na posse do seu numero de telefone, não deixo de notar no sentido-aranha a actuar, que é interrompido bruscamente pelo kanina: Hã maluco? Aquilo comia-se bem não era?
– Ya... – respondo pouco convicto enquanto empurro a dupla porta á lá wildwest do salão de jogos da estacão, onde decerto se encontra o chapas, visto ser o seu local predilecto das manhãs perdidas...
- Epá mas hoje tinha aí um programa mais alternativo, tás a ver? Com o Chapas... E o Puto e o Russo também... e o Fana diz que aparece á noite e tudo... Em resposta, os meus olhos dizem-lhe que paxaxa é paxaxa e ele encolhe os ombros em concordância... Descobrimos o chapas na máquina mais viciante de todos os tempos: Super Pang (Dizer muito rápido e com sotaque francês) e aproximando-nos sorrateiramente. A três metros do chapas, o kanina começa a dar balanço ao braço direito e com a mão respectiva, dá-lhe um palmadão descomunal nos costacios, gritando: Tão maluco? Que ias ter com a malta e o caralho... O chapas depois de perder um bonequinho azul, tira os fones e olhando para o relógio dos transformers, diz: Eh-eh-eh pah, tava aqui no pang i-i-i-i então...
- FODASSE e chegas ao boss ao menos caralho! – grita ainda mais alto o kanina na brincadeira só para o deixar num nível de embaraço aceitável.
– Na-na-na-não tem boss caralho. Che-che-che-chego ao fim ás vezes... – diz ele todo cagão.
Olho em redor, reconhecendo algumas personagens... O dono desta merda tá lá no seu cubículo gradeado a contar trocos, uma figura vagamente conhecida joga no virtual soccer e fuma ao mesmo tempo e meia dúzia de putos estão de volta do sega rally... Nada de especial... Fico a olhar pákela merda das bolinhas enquanto o kanina vai á casa de banho e aproveito para checar o fone esquerdo do player 1... Ouço uma cena tipo martelos que costuma ser usada nos soundtracks de filmes manga... O cantor diz magic people, voodu people... Ok, muito robótico para mim de momento... O kanina volta da casa de banho, passando pela gaiola dos trocos, aos pulinhos e deslizando de joelhos uns bons metros antes de nos alcançar... o dono olha com aquela cara de dono e reminiscências do tempo em que ele ficava á entrada a pedir BI’s assaltam-me a mente... Nesses tempos as máquinas tinham outro sabor, eram Temperadas pela Proibição e pela Culpa e bem Embrulhadinhas no Molho Espesso e Inebriante da Novidade... Agora, passados alguns anos, essas mesmas máquinas tornaram-se pouco mais do que insípidas... É o tal do Fruto Proibido que tanto ouvimos falar e não compreendemos até ele se tornar Rotina... Ok, mas anyway, depois de eu dar 3 secos á Alemanha com a Arábia Saudita e o seu 3-4-3 para em seguida perder a final com o Brasil nos penalties, tentamos desgrudar o Chapas do Pang com a promessa de vários duelos lendários de Tekken na casa do Kanina, o que conseguimos a muito custo... Talvez outro aspecto preponderante á sua decisão tenha sido o aroma açucarado da Musga... Talvez.. Então, em total sintonia, descemos a ladeira da estacão de comboios que divide os Reinos da Nova Massamá e a Velha Barcarena e disparamos direitinhos ao Cubículo do Chulé, vulgo arrecadação do Kanina, resignados com o facto que hoje e só hoje, será como todos os outros dias...